Como Viver Em Paz?
É verdade, a vida é complexa e sempre maior do que o maior que possamos arranhar conceber. E se a Puberdade nos pede para nos fecharmos e nos perguntarmos incessantemente “Porquê? Porque é que isto é tudo tão difícil?”, chega a auto-proclamada Maturidade, pede para a pobre idade se acalmar e diz: “Bem, meu amigo, chega de larilices, serás sempre ilimitadamente ignorante e isto vai ser sempre maior mas, já que o suicídio não é opção, faz-te um homem, encara a vida e atira-te a ela pelos cornos.”. E a partir daí as coisas vão deslizando. No meu caso, descobri a chave para a minha vida, que elimina todo o sofrimento. Todo? É verdade, todo.
Sim, o tempo vai passando e cada vez estou mais seguro de que é isto. É o querer viver em paz que me transcende, que me convida verdadeiramente a sorrir, que pega em mim e me aproxima daquilo que verdadeiramente sou. É o querer viver harmoniosamente com aquilo que sou e sinto, sem máscaras que me aproximem dum suposto ideal e me afastem do Eu, sem redes de segurança de mentiras entrelaçadas facilmente desfazíveis, sem andas instáveis que me tentem fazer parecer mais do que sou. Ser só e todo eu.
E desde cedo que fui intuindo que era por aqui que queria ir. Ora, se o caminho era por aqui, restava-me apenas ir para a frente! Ou se está aqui à séria ou não se está. Assim, de forma meio orgânica e tantas vezes inconsciente, fui percebendo onde é que tinha de pisar para me aproximar desse Castelo Harmonia que tanto desejo.
CONHECER-ME
Primeiro, tenho entendido que viver em paz implica CONHECER-ME. Explorar, desarrumar todo o meu ser, averiguar as minhas motivações, arrancar os meus interesses, observar os meus estímulos, atentar nas minhas movimentações interiores e guardar as lições que o meu ser me vai sugerindo. Conhecer bem aquilo em que deslizo sem atritos, aquilo que me custa, os momentos em que fico envergonhado, o que é que me descansa,… Sem conhecer bem este bólide que conduzo é-me impossível querer aprimorá-lo.
ESTAR ATENTO
O movimento seguinte foi o de ESTAR ATENTO, observar como é que as pessoas à minha volta se movimentavam, como é que interagiam e ir tirando notas mentais daquilo que queria levar para a minha vida. E é engraçado como tenho bem escarrapachados na memória os momentos em que uma ideia nova me aparecia e eu dizia “é isto mesmo!”. Aconteceu com a primeira pessoa que vi a gozar com ela própria e a contar abertamente aquilo que tinha de menos bom, com a primeira vez que ouvi a frase “só se gaba quem precisa”, com um orador que provou a eficácia duma entoação cativante,…
REFORMAR-ME
Mas o caminho não poderia ficar pela observação serena, era preciso REFORMAR-ME, criar uma caixa forte para este tesouro que é a Paz. E esta reforma implicou assim fazer frente a toda e qualquer desordem que fosse sentindo. Sem querer partir para voos demasiado espirituais que escapam à minha ilimitada ignorância, aquilo que fui tendo como essencial foi sinalizar situações que estavam desreguladas e trabalhar por as calibrar.
Antes, irritava-me constantemente com praticamente tudo o que perturbasse a minha visão bela da Vida, fosse com uma caracteristicazinha menos valiosa de alguém, fosse com o estado do Mundo ou com os atrasos sistemáticos de um amigo, fosse pela estupidez que me rodeava ou pela frustração de não conseguir fazer o que queria. O meu ser encarniçava-se, contraía-se e soltava irritação incontrolável qual metralhadora cega de munição ilimitada. E foi o entender o quão pouco bem isso me fazia (e consequentemente também aos outros, porque uma bomba, mesmo que isolada, tem sempre repercussões nas imediações) que me fez querer limar essa aparentemente ilimável aresta.
Agora, será que tudo aquilo que somos é limável? Será que podemos educar cada uma das nossas reações, aproximá-las cada vez mais da nossa vontade e mostrar que quem manda, de facto, é o nosso ser? Ouço tantas vezes coisas como “pronto, ele é assim e só temos é de aceitar” ou “nasci assim, não posso mudar”, será que existem características imutáveis? Bem, mais uma vez, a minha ilimitada ignorância não me permite avançar muito mais, mas a minha parca experiência tem-me vindo a dizer: “sim, há muita coisa aparentemente não mudável e fixa que pode ser trabalhada”. Mas tem de ser trabalhada, demora tempo, exige esforço.
E é isto que tenho tentado fazer com a irritação, com a exigência, com o semi-introvertidismo,… pegar-lhes pela mão, conversar com eles, aproveitar o útil que trazem e impedir que se apoderem da sala de controlo. E que maravilha tem sido! Sinto-me um pedreiro desajeitado que tem a seu dispor um cubo em bruto e que pode, livremente, esculpi-lo como quer. Claro, com limitações de tempo e de materiais de construção mas com toda a liberdade e criatividade!
OUVIR A CONSCIÊNCIA
Acho ainda engraçado falarmos em consciência pesada. Como se a consciência pesasse e empurrasse a cabeça para baixo porque, de facto, empurra. Impede-me, pelo menos durante um tempo, de encarar o presente como o presente que realmente é. A consciência é uma criança, uma criança que observa atentamente tudo, sim tudo, o que decido. E, como boa criança que é, tem a sensibilidade para separar o bem do mal.
Assim, depois de ouvir o conselho sempre pronto da criança opto tantas vezes por a ignorar e dizer-lhe com o ar pedagógico de quem já é mais maduro: “olha, consciência, eu vou fazer isto mas é só porque blablabla está bem? É só ficares caladinha até porque, no final de contas, qual é o mal?”. Ela parece ficar num silêncio misterioso e lá vou eu fazer o malzito sem importância. E depois é que são elas. A criança, com a justiça a rebentar-lhe pelas veias e a indiscrição de quem tem as prioridades bem ordenadas, grita alta e loucamente “Palhaço! Não devias ter feito isso aaaaaaaaahhhhhhh! AAAAAAAAAAHHHH!” E fica nisto tempos e tempos! Bem que lhe posso implorar “Shhhh, vá lá, foi só uma vez, fica caladinha!”, mas ela não me ouve, não se deixa levar por demagogias baratas e continua no seu grito incessante por um mundo do Bem!
E eu, amante da paz e do sossego, tenho vindo a detestar cada vez mais os gritos lancinantes da consciência. Assim, vendo que as minhas tentativas de a manter caladinha não resultam, o remédio tem sido só um: esforçar-me por ouvir os conselhos da criança e tentar ao máximo ser-lhes fiel. Mais uma vez, que alegria tem sido ouvir essa tão discretamente sábia criança.
IMPLICAR-ME
E atenção que esta paz de que aqui falo não é comparável à paz de cemitério, à ausência de pensamentos, à inexistência de relações digna de um ermita ou ao permanecer imóvel e totalmente vegetal. Aliás, dificilmente estaria em paz se não me pudesse expressar, se não pudesse relacionar-me com outros indivíduos e se não pudesse envolver-me em projetos que tanto fulgor me transbordam. A paz de que falo está numa ausência, essa sim, de tensões, de fricções interiores. Aliás, para poder estar em paz preciso, antes de mais, de estar vivo, de ler, de passear, de querer conhecer o Mundo, senão a curiosidade gritar-me-ia constantemente e a paz dificilmente conseguiria descansar. Não permito que a paz que procuro venha da ignorância, da apatia, do desinteresse. Mas sim uma paz que venha da Sintonia total, duma Leveza de cabeça.
DESPREOCUPAR-ME
Um dos passos mais belos deste meu andar foi o ter assassinado de forma violenta e irremediável toda e qualquer preocupação que possa vir. “Ah mas isso não se controla!” Ai controla controla e é a coisa mais maravilhosa de se controlar! E se eu vivia preocupado! É certo que tenho tido uma vida anormalmente bem empacotadinha mas, sinceramente e carregando já um belo tempo de confirmação, duvido que alguma coisa me possa preocupar. “Seu insensível!”, mas é verdade, cá está um aspecto em que ser mais adepto do lado racional traz vantagem.
Desde o primeiro momento em que assassinei uma preocupação, que o método se mantém. O que acontece na minha cabeça não vai muito para além disto: olho para o objeto passível de aplicar preocupação, penso “em que é que a preocupação me vai ajudar a lidar com isto?” e a resposta é sempre só uma “Em nada, a preocupação só te desajudará”. De seguida, mantendo os pés no chão e o pulso firme, brado: “Muito bem, então peço à Preocupação que saia da sala, não preciso dela”. E lá vai ela embora, derrotada e cabisbaixa.
E passei a aplicar isto em tudo, em momentos stressantes, antes de testes, em situações limite,… A preocupação nunca é benéfica. “Ah mas se a tua mãe tiver sido atropelada por ti e estiver quase a morrer? Não te vais preocupar?”. Não. Vou estar obviamente interessadíssimo em que tudo corra bem e que ela sobreviva mas focar-me-ei em chamar tudo aquilo que tenho para tentar resolver a situação. A preocupação só me perturbaria. E que maravilha tem sido viver assim despreocupado (mas sempre ligado e interessado pelas coisas e não um babuíno apático!).
DESAPEGAR-ME
E esta despreocupação vem de mãos dadas com o verdadeiro ponto essencial desta minha busca pela Paz, o desapego. Falo de apego como “sem isto não poderei ser feliz” e vivo cada vez mais com a certeza de que não existe nada sobre a qual dependa exclusivamente a minha paz. E não falo duma alienação do mundo mas sim num interagir com o mundo sem dele fazer depender a minha felicidade.
E não apenas apegos materiais. “Não seria feliz sem ti”, que significa “vou fazer tudo o que posso para te ter junto a mim, não porque quero o teu bem mas porque preciso!”. Isso para mim não é amor, e cheira bastante a apego. Amor significa “Eu fico bem sem ti querida, está tudo bem, mas quero ardentemente o teu bem e, por isso, deixo-te livre. Quando estou contigo é tudo maravilhoso, mas, quando não estás comigo, não fico miserável”.
No fundo, aprendi que, qualquer que seja a situação, eu vou decidir estar em paz. Se impressionar alguém, maravilha, senão, continuarei o meu caminho. Se for rico, óptimo, se não for, óptimo na mesma. Se estiver saudável, magnífico, se ficar doente, venha a doença. Este desapego vem acompanhado da determinação de encarar o que me aparece com a liberdade de rejeitar seja o que for se tal me afastar da Paz.
“E estarias disposto a abdicar duma boa carreira em troca da verdadeira Paz?” Há uns anos duvidaria mas hoje digo: claro! “Estarias disposto a ser desconhecido, um pobre sem nada em troca da verdadeira Paz?” Há uns anos duvidaria mas hoje digo: claro! Há quem defenda que os sucessos são os verdadeiros motores da felicidade, mas quanto sucessos não vêm arrastados de apegos tão afastadores da Paz? Viver desapegado é extraordinário. E sublinho para ter a certeza que não sou mal entendido. Eu interesso-me pelos outros, quero muito o seu bem, sou sensível às suas necessidades, não me deixo é controlar pela sua aprovação ou não.
“Então e nunca sentes tristeza? Vives sempre feliz?”. Esta tem sido a minha mais recente e maravilhosa descoberta! A tristeza não é incompatível com a Felicidade. Mais uma vez, Felicidade não como divertimento, prazer mas como desapego, verdadeira Paz. Claro que a tristeza e a solidão vão tentando assaltar o Castelo mas o truque tem sido manter-me firme, como quem vai para um abrigo até que a nuvem passe. E tudo passa, de facto.
E é assim que tenho vivido, na responsabilidade e deleite de um condutor, que observa a estrada, sente o travão, mantém o volante fixo ou dá uma guinada firme, escolhe a sua faixa, entra no trânsito, vai atento aos sinais, vai avaliando a velocidade, sempre com o olhar no horizonte, acelera o seu veículo, com uma decisão a cada instante e, no final de contas, espera uma viagem feliz e um bocado bem passado. É esta a liberdade que sinto e que bom que é poder guiar assim.